Atravessar o Oceano Atlântico e o Equador, Viktor Orban, Primeiro Ministro da Hungria, e Jair Bolsonaro, Presidente do Brasil, têm muito em comum. Eles introduziram reformas legais, políticas e institucionais similares, visando centralizar o poder em um mundo ainda apegado à idéia de democracia. Um elemento está a seu favor: ambos os líderes foram eleitos. No entanto, tanto Orban como Bolsonaro se dedicaram ao mesmo livro de brincadeiras para produzir um regime autoritário, ao mesmo tempo em que aparentemente sustentavam um regime democrático: a adoção de iniciativas supostamente fragmentadas, que revelam seu completo caráter antidemocrático quando interpretadas de forma holística. Enquanto Orban iniciou suas reformas há dez anos, Bolsonaro implementou um número considerável de políticas em um período de tempo muito mais curto: os últimos 13 meses.
Existem pelo menos cinco áreas de reforma, abordadas tanto pela Hungria como pelo Brasil: 1) a criação do “outro”; 2) o enfraquecimento das instituições governamentais; 3) o pacto de exclusão entre religião e estado; 4) restrições aos fundos para organizações da sociedade civil (OSC); e 5) níveis persistentes ou crescentes de corrupção.
A criação do “outro” é baseada na criação de um inimigo falso. Aproveitando a crise dos refugiados de 2015, o primeiro inimigo falso de Orban foram os refugiados. Em vez de proteger famílias inocentes, que fugiam dos horrores das guerras do Afeganistão e da Síria, Orban alimentou o medo do “outro”: especificamente, o muçulmano e o “outro” não europeu. De acordo com uma pesquisa da Pew em 2016, 76% dos húngaros, o maior número na Europa, acreditavam que os refugiados aumentavam a probabilidade de ataques terroristas no país. Quando o discurso sobre os refugiados começou a perder alguma da sua tração nas eleições municipais de 2019, Orban começou a testar novos inimigos falsos: dos prisioneiros e dos ciganos aos grupos LGBTI. Uma coisa, porém, permaneceu a mesma: a suposta necessidade de políticas antidireitos para enfrentar a ameaça falsa, como a criminalização de ativistas e restrições ao acesso de organizações de direitos humanos a fundos.
Both Orban e Bolsonaro mergulharam no mesmo livro de brincadeiras para produzir um regime autoritário enquanto aparentemente sustentavam um regime democrático.
No Brasil, Bolsonaro decidiu construir uma ampla gama de “outros” assim que chegou ao poder: negros, jovens pobres nas grandes cidades, grupos LGBTI, ativistas de direitos das mulheres, professores, povos indígenas e o movimento dos sem-terra, para citar alguns. No Brasil, os falsos inimigos também foram retratados como desculpas para a implementação de políticas antidireitos, como a política de atirar para matar nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, onde a polícia do Rio matou mais de 1800 pessoas somente em 2019, o maior número desde que os assassinatos começaram a ser medidos em 1998. Outras dessas políticas incluem o impulso do movimento de escolas “não partidárias” que conseguiu impulsionar quase 200 projetos de lei e leis em todo o país impondo censura contra qualquer “ideologia política, religiosa ou filosófica” (isto é, contra os direitos LGBTI e a igualdade de gênero); e o discurso de ódio contra os povos indígenas, que fomentou um aumento significativo do desmatamento.
As políticas antidireitos também são fortalecidas por meio de ferramentas mais tradicionais, como o enfraquecimento das instituições governamentais responsáveis pelo monitoramento do Poder Executivo. Na Hungria, Orban testou uma série de políticas para reformar o sistema judicial, incluindo a diminuição abrupta e repentina da idade da aposentadoria, que forçou 274 juízes a se aposentarem em 2012, e o empilhamento do Tribunal Constitucional com os fiéis.
Orban e Bolsonaro também esculpiram um pacto de exclusão entre religião e estado.
No Brasil, enquanto Bolsonaro recuou, até agora, de sua campanha promete aumentar o número de juízes do Supremo Tribunal Federal de 11 para 21, ele tem promovido políticas mais matizadas, mas eficazes, que enfraquecem as instituições de monitoramento, como o Mecanismo Preventivo Nacional e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Em julho de 2019, o Decreto Presidencial 9.831 extinguiu os salários de 11 membros do Mecanismo Preventivo Nacional, responsável pelo monitoramento da tortura em prisões e hospitais psiquiátricos de todo o país. Segundo o Sub-Comitê das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura, este Decreto violou diretamente o Protocolo Opcional à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura. O monitoramento também tem sido restringido por instituições censuradoras em outras áreas. Em meados de 2019, por exemplo, Bolsonaro demitiu o presidente do INPE, depois que este anunciou que o desmatamento na Floresta Amazônica havia aumentado 88% em comparação a junho de 2018.
Both Orban e Bolsonaro também esculpiram um pacto de exclusão entre religião e estado, às vezes atacando o que a extrema-direita chamou de “ideologia de gênero”, que na verdade é igualdade de gênero. Em 2018, o governo de Orban foi capaz de incluir na Constituição húngara uma obrigação estatal de proteger a cultura cristã. Em 2019, o governo de Orban cortou todos os fundos para estudos de gênero em universidades públicas. No Brasil, o movimento de escolas não partidárias, apoiado pelo presidente e pelo antigo partido político do presidente, reforçou seu apelo à censura nas escolas, especialmente em relação aos direitos das mulheres e dos LGBTI. Nesta interpretação do cristianismo, não há espaço para a igualdade de gênero ou amor ao mesmo sexo.
CSOs também têm sido percebidos como ameaças tanto pelo Orban quanto pelo Bolsonaro. Em 2017, Orban adotou uma lei, que supostamente visava promover a transparência entre as OSC, mas que na verdade impunha restrições ao acesso aos fundos, obrigando tais organizações a revelar detalhes específicos sobre seus doadores estrangeiros e a identificar-se como “organizações que recebem apoio do exterior”, muito em sintonia com a lei russa dos “agentes estrangeiros”. A Comissão de Veneza e o Advogado Geral da União Européia entenderam que a lei de 2017 violou o direito à liberdade de associação, entre outros direitos. Não há democracia quando os indivíduos são obrigados a lutar isoladamente contra o Estado.
Orban não estava, no entanto, satisfeito. Em 2018, ele pressionou para a adoção de mais leis anti-CSO, que se basearam na criação do seu primeiro inimigo falso: os refugiados. Uma dessas leis criminalizou qualquer apoio, incluindo “financiamento”, “construção de redes” e “produção de material informativo” usado para proteger os direitos de certos refugiados na Hungria.
No Brasil, Bolsonaro tentou reduzir o financiamento para organizações ambientais da sociedade civil. No início de 2019, a administração Bolsonaro tentou suspender todos os contratos entre o “Fundo Amazônia” e as OSCs. Uma vez que o governo percebeu o quão mal concebido (e ineficiente) ele havia sido ao forjar um ataque direto, simplesmente extinguiu os órgãos participativos do “Fundo Amazônia”, levando a Alemanha e a Noruega a suspender suas contribuições para o Fundo.
As semelhanças entre a Hungria e o Brasil também podem ser encontradas em níveis persistentes ou crescentes de corrupção. A Transparência Internacional acaba de divulgar seu Índice de Percepção da Corrupção para 2019. O índice classifica os países de 0 a 100, onde zero expressa um caso extremo de corrupção e 100, um caso perfeito de integridade. Embora Bolsonaro tenha sido eleito com um discurso anti-corrupção, o Brasil manteve-se nos 35, abaixo da média das Américas, e caiu para a 106ª posição no mundo. Um padrão semelhante pode ser percebido na Hungria. Neste último país, no entanto, o recuo durou 10 anos. Em 2019, a Hungria classificou 44, ficando no fundo da sua região.
A centralização do poder no Brasil exige um reconhecimento desta forma contemporânea de autoritarismo, que não se baseia num golpe militar, como vimos em tantas partes da América Latina no século passado. Ao contrário, ela é construída sobre reformas legais e institucionais que parecem fragmentadas e matizadas, mas que, quando tomadas em conjunto, são capazes de minar a estrutura da democracia, desde a proteção dos direitos ao Estado de direito.