OURA E NUTRITION
Malnutrição: consequências a longo prazo e efeitos de recuperação nutricional
Ana Lydia Sawaya
ABSTRACT
POVERIDADE e desnutrição ainda são muito altas em favelas. esta condição está associada a um saneamento deficiente e ao atraso de crescimento. estudos em adolescentes com raquitismo mostraram alta susceptibilidade ao ganho de gordura central, menor oxidação de gordura, menor gasto energético, maior pressão arterial e produção de insulina prejudicada, todos fatores ligados a doenças crônicas mais tarde na vida. recuperação nutricional adequada em centros de reabilitação nutricional pode reverter as alterações na composição corporal.
Keywords: Desnutrição, Pobreza, obesidade, diabetes, Hipertensão Arterial, recuperação nutricional.
Saúde, nutrição e condições de vida
NOWADAYS, é sempre mais claro que, para uma real compreensão das doenças e suas consequências, os aspectos antropológicos, o dinamismo psicológico e o diagnóstico social das pessoas fisicamente frágeis devem ser considerados. Uma quantidade razoável de trabalhos científicos oferece cada vez mais exemplos dessa integralidade, como os estudos sobre os efeitos da felicidade na saúde das pessoas até o final de sua vida. um estudo realizado nos Estados Unidos, por exemplo, concluiu que, dentro de uma amostra de freiras católicas, escritos com conteúdo emocional positivo aos 22 anos de idade estavam associados à saúde e longevidade aos 60 anos (danner et al., 2001).
Por isso, no que diz respeito à fisiologia, o que se passa com uma pessoa que se considera feliz? existem fortes relações entre esse tipo de afirmação, expectativa de vida e a frequência e intensidade de doenças crónicas, tais como cardiovasculares, inflamatórias e auto-imunes (steptoe et al, 2005). tais estudos identificaram um marcador biológico inversamente correlacionado com essa declaração de felicidade: o cortisol, a hormona do stress. quanto mais altos os seus níveis na saliva quando a pessoa acorda, maior é o nível de stress e pior é a qualidade de vida a longo prazo. Tornou-se cada vez mais difícil separar o ser humano em pedaços… a qualidade de vida do ser humano depende do que ele sente e do significado que dá às coisas, e ambos estão associados ao seu estado fisiológico.
Os mesmos mecanismos são ativados quando a pessoa recebe alimentação insuficiente em termos quantitativos, ou alimentação inadequada em termos qualitativos (quando há falta dos nutrientes necessários, como vitaminas e minerais), principalmente no início da vida. o órgão que controla toda a nossa atividade metabólica, o sistema nervoso, se “programa” permanentemente para economizar energia na forma de gordura e reduzir o crescimento, a fim de garantir a sobrevivência em condições adversas. uma das hormonas essenciais para isso é o cortisol. Essa situação é chamada de desnutrição, e a hormona que a regula, juntamente com outras, é, por isso, a hormona do stress.
O círculo vicioso formado pelo aumento inadequado da ingestão alimentar/doenças também é bem conhecido: perda de peso, crescimento deficiente, baixa imunidade, danos na mucosa gastrointestinal, perda de apetite, má absorção alimentar, alterações metabólicas importantes. E voltamos sempre à hormona de stress elevado cortisol – que mais tarde desempenhará um papel muito importante na associação da desnutrição com doenças crónicas na fase adulta.
Malnutrição é responsável por 55% das mortes de crianças em todo o mundo. Está associada a muitas outras doenças e ainda hoje é considerada a doença mais mortal para crianças menores de 5 anos de idade.
Mundial e também no Brasil, o tipo predominante de desnutrição corresponde ao retardamento do desenvolvimento, que tem se destacado como um indicador não só da desnutrição, mas também da pobreza, uma vez que é sabido actualmente que o factor ambiental é muito mais significativo do que o genético para determinar a altura final dos indivíduos.
Existem várias causas para o raquitismo: nutrição insuficiente da mãe, desnutrição intra-uterina, falta de amamentação até os seis meses de idade, introdução tardia de alimentos complementares, quantidade e qualidade inadequadas dos alimentos complementares, absorção de nutrientes prejudicada por infecções e doenças parasitárias intestinais.
Gráfico 1 mostra a importância da altura como um marcador de pobreza eficaz e directo. Aqui temos a altura média de três populações adultas acima de 18 anos: a população de um acampamento rural Mst (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), uma população de moradores de favelas (Sem Teto) em Maceió, alagoas, a média brasileira de homens e mulheres e a população de referência americana. O grupo mais pobre – e com a média mais baixa – é o dos sem-terra. Portanto, a altura é um grande indicador de pobreza.
Estima-se que, na cidade de São Paulo, entre 11% e 15% da população vive em favelas. Em Maceió, por exemplo, 50% da população vive nessas condições. a taxa de crescimento anual dos moradores de favelas tem sido sistematicamente maior do que a urbana. No estado de São Paulo, no ano 2000, essa taxa era de 2,97%, enquanto a da cidade era de 0,78 (Marques & torres, 2005). segundo dados da Prefeitura de São Paulo, a cidade tem 2.018 favelas de tamanho significativo, a maior concentração delas está localizada na Zona Sul, com 1.107 favelas (ibidem).
Por isso, as condições de vida insalubres são a principal causa do ciclo inadequado de ingestão de alimentos, o que leva a um aumento de doenças: baixo peso ao nascimento, dieta inadequada de desmame, infecções freqüentes e alimentação inadequada que levam ao atrofiamento infantil, como já foi visto. Se a alimentação inadequada continuar na adolescência e nas fases adultas, haverá um aumento de peso insuficiente durante a gravidez e, por isso, a criança nascerá abaixo do peso e já subnutrida.
Dados de crianças desnutridas tratadas no Centro de Recuperação e Educação Alimentar (CREN), em São Paulo (para mais detalhes, ver sawaya et al., 2003), mostram que mais de 70% delas nascem com peso baixo ou insuficiente. o cenário de desnutrição nas comunidades pobres de São Paulo, principalmente nas favelas, já começa a ser delineado antes do nascimento. entre essas crianças há também uma forte presença de doenças infantis. Na verdade, esses são os principais fatores que determinam a gravidade da desnutrição.
Dados do CREN mostram que, entre as crianças moderadamente desnutridas tratadas, cerca de 80% tiveram pelo menos um episódio infeccioso no último mês, e, entre as severamente desnutridas, essa prevalência subiu para cerca de 90%. portanto, a diferença refere-se principalmente à taxa de infecções. Além disso, 60% delas tinham parasitas. e outra ocorrência muito comum é a anemia, verificada em 62% delas.
Pouco em relação às infecções, é importante ressaltar que são muitas vezes situações muito simples, que não teriam grandes consequências numa criança normal, mas que podem comprometer não só o ganho de peso, mas também a altura em crianças desnutridas. Isso é confirmado pelo trabalho desenvolvido na CRen, onde as crianças em recuperação ficam o dia todo (das 7h30 às 17h30), fazem cinco refeições equilibradas por dia, recebem tratamento adequado para as infecções, e onde tanto elas como as suas famílias têm os cuidados médicos e psicológicos necessários. mesmo assim, verificamos que uma otite, uma faringite, ou uma gripe prejudicam o seu crescimento. Se estivessem em casa, sem acesso a esse tipo de cuidado, dificilmente ultrapassariam a curva (P10) abaixo da qual uma criança é considerada desnutrida (Gráfico 3).
Quais são as consequências a longo prazo da desnutrição?
Mostramos anteriormente (sawaya et al.., 2003) que as crianças que foram desnutridas e que não recuperaram em termos de altura apresentam um quociente respiratório maior do que aquelas que nunca foram desnutridas. isso significa que o seu organismo é fisiologicamente propenso a acumular gordura corporal. um quociente respiratório maior significa que a oxidação de gordura no corpo é menor. Portanto, a criança crescerá menos, terá uma massa livre de gordura mais baixa, terá um crescimento ósseo prejudicado e tenderá a utilizar a energia ingerida para a acumulação de gordura. tais descobertas estão também associadas a uma maior susceptibilidade de acumulação de gordura corporal quando as crianças mal nutridas consomem uma dieta mais rica em gorduras (sawaya et al., 1998).
Ao comparar a taxa de ganho de peso de meninas adolescentes raquíticas (D) com um grupo controle (N), um estudo longitudinal (Gráfico 4) mostrou que as meninas desnutridas apresentaram um ganho de peso mais rápido, à custa de uma redução no gasto de energia. Como fazem isso se não estão a comer bem e uma vez que a desnutrição resulta necessariamente de uma alimentação inadequada/insuficiente? Ao reduzir a taxa metabólica de repouso ao longo do período de crescimento. essa redução no gasto energético para ganhar peso está associada a um aumento da gordura corporal, principalmente na região da cintura, onde a acumulação de gordura é mais perigosa, uma vez que está intimamente relacionada com doenças crónicas, como diabetes e doenças cardiovasculares na vida adulta.
Em outro estudo que comparou adolescentes atrofiados com controles sem atrofiamento, observamos uma redução na produção de insulina pelas células beta pancreáticas (HOMA b), e como resposta a essa deficiência, uma maior sensibilidade insulínica (HOMA S). essas alterações podem levar a uma falha pancreática e a um maior risco de diabetes na vida adulta (tabela 1).
Os nossos estudos também mostraram níveis de pressão arterial diastólica mais elevados (quase toda a amostra estudada estava acima do percentil 50, ou seja, acima da maioria da população de referência) em rapazes e raparigas que vivem em bairros de lata, o que indicou um maior risco de hipertensão e doenças cardiovasculares na vida adulta (Gráfico 5).
Combinando todas essas informações (Figura 3), podemos então dizer que o consumo insuficiente durante o período de crescimento causa um estresse no organismo, levando a um aumento da relação cortisol/insulina. como vimos, a desnutrição é um poderoso estimulador do estresse e causa um aumento dos níveis de cortisol e sua ação catabólica. Além disso, a deficiência alimentar reduz a acção anabólica da síntese tecidual que depende da insulina. que o equilíbrio hormonal leva à redução da hormona responsável pelo crescimento, o factor de crescimento -1(IGF-1). estudos em animais de laboratório demonstraram que estas alterações hormonais provocam alterações vasculares (redução da elasticidade dos vasos) e renais (redução do número de nefrónios), que também podem estar a ocorrer em crianças desnutridas e ser a causa das alterações verificadas na pressão arterial e no pâncreas.
A alta relação cortisol/insulina e a baixa IGF-1 também reduz o ganho de massa muscular e o crescimento linear, além de aumentar a relação cintura/quadril e reduzir a oxidação da gordura corporal, como já vimos. Se a criança nessa condição de vida começar a ingerir uma dieta moderna e apresentar inatividade física, ocorrerá um aumento excessivo no ganho de gordura, o que pode resultar em uma associação entre atrofiamento, obesidade, hipertensão e diabetes. Dados crescentes na literatura têm mostrado evidências dessa associação na população adulta (Rosmond, 2002; Florêncio et al., 2004).
O que acontece após a recuperação nutricional?
Se houver um tratamento adequado de desnutrição no dia do hospital, as crianças desnutridas mais severamente se recuperam mais rapidamente, sua curva de crescimento se acelera. seu potencial fisiológico de crescimento registra que elas devem “se apressar” e recuperar sua altura. De facto, no CREN, as crianças recuperam a altura mais rapidamente do que o peso. Outro dado importante é que as crianças com baixo peso ao nascer muitas vezes recuperam ainda melhor que as outras. o organismo está potencialmente preparado para recuperar o que foi perdido no início da vida, em desnutrição intra-uterina. Os gráficos 6 e 7 mostram o padrão médio de recuperação verificado.
Recentemente, quando estudamos as crianças que se recuperaram da desnutrição e tiveram alta de CREN, observamos uma composição corporal normal, ao contrário do que foi verificado nas crianças desnutridas nunca tratadas e que permaneceram atrofiadas durante toda a infância e até a adolescência. Entre as meninas recuperadas, a massa magra e a massa gorda corporal eram semelhantes ao que foi observado no grupo controle, composto de crianças que nunca haviam sido desnutridas. Entre os meninos, a composição corporal era normal, embora seus valores fossem inferiores aos das crianças do grupo-controle. A densidade mineral óssea também se tinha tornado normal (Neves et al., 2006).
Estes resultados são muito importantes, pois mostram que a recuperação em altura promove uma normalização da composição corporal, evita o acúmulo de gordura descrito acima e, portanto, reduz o risco de doenças crônicas na vida adulta para crianças previamente desnutridas.
Nossa proposta para enfrentar a desnutrição no Brasil está organizada em três grandes direções. a primeira tem a ver com a qualificação e educação para enfrentar a desnutrição, com investimento nos profissionais e atores sociais que já trabalham nos meios de comunicação governamentais e privados, clínicas ambulatoriais, creches, centros de educação infantil, escolas, etc. Em segundo lugar, é necessário criar centros de referência em educação e recuperação nutricional, preferencialmente vinculados a universidades locais, para promover cursos de qualificação profissional e de liderança comunitária, centralização e análise e avaliação de dados de programas de intervenção (o que tem sido muito irregular no Brasil). esses centros também teriam ambulatórios especializados, com sistema de interconsultas (incluindo médicos e nutricionistas). Com esse tipo de experiência temos verificado resultados muito melhores em um curto período de tempo, e com uma boa relação custo-benefício. em terceiro lugar, também é necessário criar hospitais-dias para tratar a desnutrição, financiados pela sus, uma estrutura semelhante às creches ou ao pré-escolar e atendimento multidisciplinar feito por pediatras, nutricionistas, psicólogos e assistentes sociais. essas equipes poderiam atender mais de uma unidade de saúde (sawaya et al., 2003).
A origem dessas proposições é o trabalho realizado no CREN. Verificamos que uma única estrutura pode desenvolver uma nova cultura para enfrentar a desnutrição na área onde ela atua. O CREN, localizado no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, atende diretamente mais de 1.300 crianças por ano, e um dos aspectos mais importantes do projeto é a qualificação de profissionais, por exemplo, para programas de saúde familiar. Com um único centro foi possível dar à desnutrição uma abordagem focada, a um custo viável e de uma forma muito mais eficaz do que se tivesse a ver com uma estrutura não claramente identificada com os problemas de alimentação e nutrição.
Professor José Eduardo Dutra de Oliveira, que é membro do Grupo de Estudo sobre Nutrição e Pobreza da IEA, gosta de dizer: “Temos que desfocalizar o problema da alimentação e da nutrição, e devemos dar-lhe uma dignidade específica”. a relação custo-benefício será muito mais vantajosa.
Na CREN, toda a educação nutricional é feita através de atividades práticas, de práticas culinárias e oficinas de manipulação de alimentos, com as crianças e seus pais. Os sinais vitais são medidos diariamente nas crianças tratadas no dia do hospital. É essencial agir rapidamente para evitar o gasto de energia provocado pelas infecções. Caso contrário, a criança leva dois, três, às vezes até quatro meses para recuperar o peso perdido, o que também pode prejudicar o crescimento em altura.
Bibliografia
DANNER, D. D. D. et al. Emoções positivas no início da vida e longevidade: resultados do estudo das freiras. Journal of Personality and Social Psychology, v.80, p.804-13, 2001.
FLORÊNCIO, T. T. et al. Baixa estatura, obesidade e hipertensão arterial em uma população de muito baixa renda no Nordeste do Brasil. Nutrition, Metabolic and Cardiovascular Diseases, v.14, p.26-33, 2004.
MARQUES, E.; TORRES, H. Segregação, pobreza e desigualdades sociais. São Paulo: Senac, 2005.
NEVES, J. et al. Crianças desnutridas tratadas em hospitais de dia ou ambulatórios apresentam uma recuperação linear e uma composição corporal normal. Journal of Nutrition, v.136, p.648-55, 2006.
ROSMOND, R. O gene receptor do glucocorticoide e sua associação com a síndrome metabólica. Obesity Research, p.1078-86, 2002.
SAWAYA, A. L. et al. O atrofiamento leve está associado com maior susceptibilidade aos efeitos de dietas com alto teor de gordura: Estudos em uma população de favelas em São Paulo, Brasil. American Society for Nutritional Sciences, v.128, p.415S-420S, 1998.
__________ . Os dois Brasis: quem são, onde estão e como vivem os pobres brasileiros. Estudos Avançados, Brasil, v.17, n.48, p.21-44, 2003.
STEPTOE, A. et al. Afecto positivo e processos neuroendócrinos, cardiovasculares e inflamatórios relacionados à saúde. PNAS Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, v.102, n.18, p.6508-12, 2005.
Recebido em 5.15.2006 e aceito em 6.16.2006.
Ana Lydia Sawaya é fisiologista, professora associada do departamento de Fisiologia da unifesp, presidente do Centro de Recuperação e Educação Nutricional (CRen), coordenadora do Grupo de Estudos sobre Nutrição e Pobreza do Instituto de Estudos Avançados da USP, membro da task force dieta, nutrição e Saúde a Longo Prazo/Ins (União Internacional de Ciências Nutricionais). @ [email protected]
Translated by Rodrigo sardenberg. o original em português está disponível em http:// www.scielo.br/scielo.php/script_sci_serial/lng_pt/pid_0103-4014/nrm_iso.